quinta-feira, outubro 05, 2006

Purgatório. (Burlesco)

"Tenha a bondade de me auxiliar!!!"
Ah... este grito. Como me fere... como me custa ouvi-lo a aproximar-se. Passo a passo, o som da sua voz ecoa não se deixando apagar pelos gritos metálicos do metro em direcção a uma qualquer estação que já me esqueci o nome (não importa, não é nesta que eu posso sair).
"Tenha a bondade de me auxiliar!!!"
Cada vez mais próximo. De cadeira em cadeira abana a garrafa de água cortada ao meio, deixando chocalhar as poucas moedas que até agora conseguiu acumular. A sua cuidadosa vara emite um estranho ritmo desconcertante enquanto o pobre tenta não cair na escuridão que é a sua vida.
"Tenha a bondade de me auxiliar!!!"
Está ao meu lado.
Eu não quero olhar!!
Não me façam olhar!
Por favor por favor por favor por favor por favor... não!!
No entanto ergo os olhos e... MEU DEUS!!
OS OLHOS!!
Não há olhos! As pálpebras estão unidas numa macabra cicatriz de carne deformada, tapando onde deveriam estar as orbes que tão romanticamente chamamos "os espelhos da alma". Que tipo de alma será aquela que não tem espelho? Presa numa escuridão da qual não pode sair... que efeito terá isso numa alma?
"Tenha a bondade de me auxiliar!!!"
Paraliso num êxtase aterrorizado e sou incapaz de esconder na minha cara a pena, tão obviamente traçada nos meus lábios, que sinto por ele. E secretamente solto um repugnante suspiro de alívio por ele não a conseguir ver.
Em menos de dois segundos o ceguinho volta ao seu desequilibrado percurso a sua vara à frente anunciando qualquer obstáculo. Só aí recupero consciência e apercebo-me que nem sequer lhe dei nada. E que lhe podia eu dar? Luz? Um apoio? Uns olhos?? Não... uma esmola, que mais lhe posso eu dar? Que outra coisa lhe posso dar senão este placebo? Ou será que a panaceia é para mim... que não tenho a vontade de o ajudar realmente?
"Tenha a bondade de me auxiliar!!!"
Alguns dão-lhe a esmola tão desesperadamente desejada, mas nunca levantam a cabeça. Tudo menos isso! Atiram a moeda de valor que nem eles próprios sabem esperando que isso o afaste... esperando que não tenham que ver aquela cara, aquela... alma coberta.
Já passaram três estações; a próxima é a minha. Mal as portas deslizam já me levantei e saí, um sentimento de náusea e ódio por mim contamina-me.
"Tenha a bondade de me auxiliar!!!"
Oiço a frase repetida como um mantra uma última vez antes das portas fecharem. O metro continua o seu percurso mas sem mim. No entanto ainda não posso sair deste subterrâneo dantesco. Ainda tenho que mudar de linha... o meu destino, Baixa-Chiado, ainda está a cinco estações de distância. A náusea persiste...
Ainda me espera um curto percurso, tornado maior pela azáfama da multidão que se movimenta comigo, cada indivíduo tentando não embater nos outros. Todos começam a subir nas escadas rolantes já a abarrotar. Já esquecidas estão as palavras do artista: "havia dois caminhos... e eu segui o menos percorrido". Só há um caminho... e neste momento está bem ocupado.
O metro chega à estação as portas abrem-se deixando passar as pessoas que se entalam tentando apanhar os lugares que ainda estão livres. Por sorte arranjo um assento... ao menos não será uma viagem cansativa.
Uma mulher dos seus cinquenta anos ocupa o lugar á minha frente. Na sua cara, está estampada um ar que, mesmo sem o reconhecer, me perturba. É aí que reconheço a expressão, os olhos pesados dirigidos ao chão, as mãos apertadas uma contra a outra como que lutando entre si... é vergonha esta expressão.
Mas porquê?
Como que respondendo, a mulher esforçadamente retira um papel da sua mala. Nele lê-se:
"Estou muito doente e já não tenho dinheiro para pagar as minhas receitas. Por favor ajude."
Um nó prende a minha garaganta... como é possível? As roupas... aí finalmente noto que apesar de mais caras do que as dos outros pedintes, estão amarrotadas, com um ar de não serem lavadas há pelo menos uma semana. A mala, uma óbvia imitação, também ela já sofreu o desgaste do tempo, a pele falsa manchada. Quando começa a levantar-se, uma tosse estérica possui de súbito a mulher revelando a doença que a afecta.
Os seus olhos lenta e dolorosamente erguem-se acabando por se encontrar com os meus. Um embaraço e dor tremenda escondem-se por trás da sua face. Os seus lábios mudos movem-se tentando desenhar as palavras cuja voz se recusa a dizer:
"Por favor..."
Que tipo de pessoa será ela? Que vida será a sua? Que doença lhe rouba o orgulho do qual apenas resta o suficiente para ainda recusar pedir de voz alta? A pobreza nota-se nas mãos que ainda têm a marca dos aneis que já terá penhorado... mas ainda não a ocupou totalmente. Ainda não está a passar fome... ainda faltam uns dias, umas semanas, quem sabe. Mas quando isso acontecer, até mesmo a voz terá de regressar.
Dou-lhe quase todas as moedas que tenho comigo, escavando na minha carteira qualquer vestígio de trocos. Ponho-os todos na sua mão e ela olha para mim com um olhar surpreendido. Pára por uns segundos e toma a decisão de voltar a sentar-se... parece que ficará satisfeita com o que lhe dei por enquanto. Esconde o papel na sua carteira, um olhar de alívio na sua cara por ainda ninguém o ter visto.
Os seu olhos capturam os meus, preenchidos por uma gratidão coberta de extrema vergonha. Um sorriso que já não consegue evitar começa a esboçar-se. Quase suspirado, sai da sua voz um quase choro:
"Obrigado... muito muito obrigado."
Não... tudo menos isso!! Por favor não olhe para mim assim!! Não tenha vergonha! Não me faça isso!!! MAGOA-ME... não vê o quanto me dói vê-la assim??
Passadas duas estações a mulher levanta-se e lança-me um último olhar antes de sair. Retomado o andamento do transporte, um estranho peso levanta-se do meu peito... mas, a náusea persiste.
Subitamente, do rúido eléctrico dos carris, um pranto ergue-se bruto e magoado.
"Por favor! Uma esmolinha... tenho tanta fome!"
Olho para trás e uma mulher, esta já devorada pela pobreza, agarrada a uma canadiana tentando não pousar o pé direito, inchado e vermelho, quase que se prostra pedindo a caridade dos passageiros. A dor é óbvia na sua cara mas a vergonha... essa já não existe. O orgulho é um peso no estômago para quem não consegue pagar as suas próprias refeições. Não... esta já se habituou. Esta já cuspiu na sua cara. Esta tem fome.
"Uma esmolinha por piedade! Já não como há tanto tempo..."
Como que cobertas por uma carapaça, as pessoas nem sequer cruzam o olhar com a face desesperada. A mulher aproxima-se lentamente de mim... um solavanco desequilibra a pobre, já em dificuldade de andar com uma canadiana. Cai contra um dos passageiros que a ajuda a levantar-se... um ar de desdém e frete ocupa-o enquanto passa a mão pelo casaco do fato de negócios que usa como uma aramadura contra as ameaças que já se apoderaram da mulher aleijada.
Não quero ser outro desses!!!
Está cada vez mais próxima.
"Uma esmolinha... por favor!"
Lembro-me que já não tenho nenhuma moeda comigo. Tenho de evitá-la... não posso fazer face àquela mão desesperada sem lhe dar nada.
Não quero... não quero... não quero... NÃO QUERO!!!
O metro pára... é a minha estação! Levanto-me e avanço para a saída tentando evitar a mulher e os seus olhos. Consigo e assim que as portas se fecham sinto que escapei um terrível destino. Mas aí apercebo-me... a verdade... essa cruel cicuta que tenho que beber... é que eu sou um desses! Também eu não a quis ver... também eu a evitei.
A náusea persiste...
Preciso de sair!
Quero sair!
Não há céu neste sítio... nem brisa... nem espaço!
Preciso de sair!
Quase a correr aproximo-me da saída.
Inserir Cartão... Passagem Livre.
Começo a correr. Não me importa quem olhe... normalmente esforçam-se por não olhar uns para os outros com medo que os seus olhares se cruzem.
Corro até às escadas... são longas e demoradas. Evito as escadas rolantes demasiado ocupadas e escolho as normais quase desocupadas (eis o "caminho menos percorrido"). De dois em dois degraus quase salto enquanto um forte vento frio anuncia-me a saída.
Não presto atenção à criança esfarrapada e suja que, com a sua doce e ingénua voz de quem não
entende totalmente porque precisa de fazer o que faz, cativa os outros passageiros. Não posso prestar atenção... já não posso.
Desculpem-me... não posso mesmo.
A saída em fim... saio!
LUZ!!!!
AR!!!
CÉU!!!



...
..
.
Mas, a náusea persiste.

5 Comments:

Blogger Pedro de Arimateia said...

Arrepiante, sem dúvida.

Conseguiste escrever sensações, algumas que na minha opiniao é tão dificil transmitir. Que nos tocam profundamente.

E mais não consigo dizer... porque eu próprio não tenho mais palavras.

Abraço,
André

1:02 da tarde  
Blogger Pedro said...

Bravo!
Hoje vim ler o teu post poucos minutos depois de ter saído na minha estação de metro, deixando para trás a senhora das canadianas com umas moedas oriundas da minha carteira. Sim, disse "umas". Afinal de contas, todos temos essa carapaça, e mm qd a abrimos é raro termos a força de a despirmos por completo. Eu não tive essa força. Talvez por isso, ao contrário de ti, o máximo q consegui foi libertar uns trocos, em vez de despejar o cascalho todo q ali tinha, e provavelmente seria ainda insuficiente para pagar à pobre criatura um bom lanche. Mas somos assim. Vis, infames e ordinários. E tb é preciso ler e escrever textos como o teu para despertar consciências. E fazer algo mais do q verter uma lágrima ao som de "Alle Menschen werden Brüder, Wo dein sanfter Flügel weilt!".
Um abraço
Pedro

7:18 da tarde  
Blogger Francisco M.A. said...

Há muito tempo que não lia algo que me fizesse viver tão bem as palavras como este teu post. Talvez porque tu tenhas expressado sentimentos que às vezes não quero ou não consigo reconhecer, parece que me ajudaste a perceber melhor aquilo em que penso quando passo por estas situações.

Obrigado e um abraço,
Francisco (violoncelo, igl)

1:08 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Acho q é bastante evidente q nos conseguiste sensibilizar para este quadro triste e tao humano.
Ao ler o texto fui tomando consciências que já tinha esquecido. Afinal de contas eu vivo neste mundo.. mas o q é certo é q me acho como um "desses", q passam sem ver, completamente indiferente à desgraça personificada q vejo tds os dias e q nao me lembro q presenciei. Disso realmente me envergonho e acho q o teu texto me ajudou a abrir mais um bocadinho os olhos.
Envergonho-me das queixas q faço todos os dias..
Envergonho-me da noçao da realidade q tenho, desapercebido das outras noçoes.. noçoes onde a filosofia deixa de ter sentido pq n ha razoes para pensar, so o automatismo de viver..

11:44 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O que tu aqui nos deixas-te é a pura e dura realidade do nosso dia-a-dia. Enquanto uns têm tudo e esbamjam montes de dinheiro em coisas fúteis que só dão prazer, outros passam o dia a tentar sair da situação miserável que os atingiu, obrigando-os a apregoar aos quatro ventos a sua necessidade por uma moedinha...
E nós, tantas vezes, passamos bem perto destas realidades, convivemos com elas diariamente e... fechamos os olhos. Ainda bem que há pessoas, como tu, que se deixam tocar por estas vozes que bradam aos céus...

Se quiseres dá uma olhadela no meu blog: musica-algomais.blogspot.com

João (IGL)

10:30 da tarde  

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