terça-feira, outubro 31, 2006

Não mais! (Súbito expressivo)




Por vezes, há frases que nos tocam com a sua beleza. A forma como tão suncintamente expressam um sentimento, um momento... seja o que for. Essas frases são normalmente utilizadas quer no plágio mais dissimulado ou na mais respeitosa citação.
Porém, não foi com uma frase dessas que fui brindado enquanto folheava um qualquer livro que lia na altura. Pelo contrário, encontrei um derrotismo em estado puro que já não encontrava há muito. Não referirei o nome do autor da frase, não desejo criticar a pessoa, per se, mas sim a frase que me deixou algo (senão bastante) alarmado.
"Já não é possível escrever poesia desde Auschwitz"
Esta frase deixou-me num estado enraivecido (tanto que desisti de continuar a ler o livro). Assustava-me a forma como tão reverentemente era citada.
Como podem haver pessoas que concordam com semelhante afirmação?
Não desejo de forma alguma ignorar, muito menos justificar, os terríveis actos que marcaram esse momento tão escuro da história humana, que foi o presenciado nos campos de concentração nazis. Nem da mesma forma quero denegrir a importância que a sociedade judaica tem dado à preservação da memória destes actos. É sem dúvida necessário lembrar os erros passados para que estes não se possam repetir. Especialmente um erro tão abominável como esse que foi o Holocausto.
No entanto, também acho necessário lembrar que não se pode desistir. Ser derrotado pelo pior do homem é negar que o seu melhor o suplanta. Aceitaremos que estamos condenados a uma vida de malícia com pequenos laivos de doçura?
Eu digo não. A frase em si é presunçosa o suficiente para me deixar zangado, mas a ideia que na realidade muitas pessoas corroboram com este ponto de vista faz-me levar as mãos à cara.
Sei que nunca chegarei a compreender completamente os horrores feitos em tais campos de chacina, e nunca entenderei o que é ser alvo do ódio e desprezo das massas apenas pela minha escolha religiosa.
Mesmo assim, o ódio das massas, como podemos notar, é vasto e multifacetado o suficiente para odiar tantos grupos, pessoas, crenças, atitudes e valores. Por isso mesmo, será que devemos continuar a considerar o caso judaico como especial?
A meu ver, as capacidades que esse povo de Israel (geográfico ou não) provou e ainda hoje prova, são razão o suficiente para merecer o meu respeito. Penso ainda, que a criação de um caso especial para os judeus, como quem penitentemente "pede desculpa", é mais uma forma de desrespeito do que qualquer outra coisa. A vitimização nunca, a meu ver, enobreceu fosse quem fosse.
E no entanto continuamos numa atitude hipócrita face a séculos de injustiça e perseguição. Por um lado agimos como se nada tivesse acontecido; muitos deixam passar a sua vida sem nunca se lembrar que de facto, em nós corre o sangue dos culpados e das vítimas. Por outro lado, numa atitude de "mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa" (mais católica do que qualquer outra coisa) todos os anos recordamos esse abominável pedaço da história... pese embora o facto que no dia a seguir estamos mais preocupados em apanhar o transporte do que em recordar aquilo que devemos assegurar que nunca se repita.
Então que devemos fazer?
Tomar a frase como exemplo a frase e assegurar-nos que a poesia "já não é possível" como que em penitência ou solene recordação das terríveis acções do passado?
Não, digo eu!
A história do homem é povoada pelos actos mais horrendos como que testemunho do quão longe estamos da perfeição. No entanto, e isto é vital, nunca por um segundo parámos de fazer poesia. Nunca parámos de descobrir o belo que há dentro de nós (apesar do belo ser discutível, mas deixemos isso para outra altura) por muito horrendo que seja o contexto. Terá Shakespeare perdido a centelha que o incitava a escrever, ou porventura Pessoa viu demasiado fel para que Caeiro pudesse ensinar-lhe a beleza na simplicidade das coisas?
Não, mais uma vez!
A poesia subsistirá porque ela é (perdoem o romantismo adjacente) a flor que nasce em qualquer terreno por mais sujo que seja.
Já duas gerações passaram desde tais horrores e que vemos nós? Pelo mundo os movimentos de extrema direita ganham um poder imenso, enquanto que nas escolas, em pleno céu aberto, crianças demasiado novas para serem tão condenáveis praticam os piores actos de xenofobia e racismo.
Onde teremos errado?
Porque parece estarmos mais perto do que nunca de uma repetição das barbáries sucedidas?
Num mundo onde reina o medo e um terrorismo com demasiados nomes e culpados; onde as desigualdades são cada vez mais sentidas; onde aquilo, que tantos séculos levou a ser construído e preservado, é agora posto em causa pelas mesmas pessoas que se esforçaram para o erger; onde, um dia, o conceito de privacidade não será mais do que uma memória; onde as novas gerações não prometem mais do que uma medíocre continuação do estado das coisas. Neste mundo, neste hoje (tão mais presente do que qualquer campo de concentração), onde faltou lembrar os nossos erros, onde faltou lembrar os horrores passados?
Não faltou tal coisa. Seguramente não faltou essa lembrança... nunca me faltou a mim pelo menos.
O que faltou, penso eu, foi lembrarmo-nos que Auschwitz já passou. Lembrar que hoje é diferente de ontem. Lembrar que um milénio nos separa desses actos. Temos um milénio novinho em folha e não devemos gastá-lo com tristes fotografias e nostalgias do que já passou. Nunca nos faltou olharmos para trás... mas por alguma razão parámos de olhar para a frente.Por alguma razão esquecemos como escrever poesia.
Ou pelo menos desistimos de o tentar fazer.
Mas eu recuso-me a deixar a situação assim. Recuso-me a ser mais um Pilatos que depois de lavar as mãos recusa-se a vê-las sujas mais uma vez que seja. Cavarei esta terra, as minhas unhas negras e partidas, sangrarei mesmo! Mas não desistirei de tentar mostrar que o passado não é mais do que isso. Recuso-me a pensar que aqueles que sobreviveram a esses campos de morte quereriam passar o resto das suas vidas na memória desse inferno a que escaparam, como quem, depois de ser torturado, continua a sonhar com essa mesma tortura.
Auschwitz acabou, é passado, deve ser lembrado como aquilo que já não é e não aquilo que continua a ser. Muitos dirão que, desse modo, acabaremos uma vez mais por esquecer o que nunca devia ser repetido. Muito sinceramente, não me preocupo com o que possa advir dessas acções. Certamente não somos tão frágeis que não sobrevivamos a mais um erro... afinal de contas, sobrevivemos a Auschwitz. Ainda somos humanos, espero.
"Já não é possível escrever poesia depois de Auschwitz."
Nunca! Agora mais do que tudo, é preciso poesia, é preciso encontrar o pedaço de nós que resiste às nossas piores atrocidades.
A poesia subsiste, não o mal (seja lá o que for).
Esse agora é apenas cinza e terra, para uma flor despontar.



4 Comments:

Blogger Pedro said...

Eu posso não escrever poesia, mas quero estar sempre aqui para dizer "não!", como tu dizes. Não à teia do passado que apanha o presente e o deixa a apodrecer à espera que chegue a aranha. É preciso libertá-lo, fazer dele a mais bela borboleta desta nossa "nova primavera". E quanto à poesia? Aí deixo dois pequenos excertos, "na mais respeitosa citação", escritos em Portugal, relacionados com isto mesmo, e posteriores a Auschwitz:

"Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não."

Manuel Alegre - Trova do vento que passa


"Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre a mãos de uma criança."

António Gedeão - Pedra Filosofal


Dixi. :P
Um abraço
Pedro

10:19 da tarde  
Blogger Andreia said...

gostei

7:32 da tarde  
Blogger Elsa Gonçalves said...

Olá Atalaia
eu sei, eu sei ... fora de prazo, como o iogurte!!
ler-te é quase como ouvir-te e ver-te.
sorte a minha que possuo esse maravilhoso valor acrescentado.

o silêncio pode também ser uma resposta (juridicamente é qualificado).

nem sempre as palavras nos libertam, às vezes podem aprisionar-nos, talvez por isso as deixe meio soltas, à espera da melhor bolina, ou de melhores ventos.
Mas hoje tinha que te vir dizer olá.
Bj
maria

12:28 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

6:05 da tarde  

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