quinta-feira, abril 13, 2006

Palavras (recitativo em língua mãe)


As Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas,
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

Que estranho dom, este, o das palavras... e que dificil é explicá-lo.
Que estranho poder o delas... que vivem no seu mundo só delas, criado por elas e para elas.
A meu ver... existem dois mundos em que o homem vive: o mundo das coisas e o mundo das palavras. E tão ligados estão que nem o percebemos.
Quando escrevo uma lista de compras, num papel ponho todos os produtos. Esse mundo das palavras existe para além desses produtos. Carvão é carvão mesmo que eu não o chame assim, mas sem esse nome não o consigo chamar seja o que for. Se eu não tiver palavras não chamo nada, sou mudo, vivendo num mundo só de gestos sem nexo. Mas também, fará algum sentido haver palavras sem significado?
Que estranho o dom das palavras... não são mais que sons ou estranhos códigos, mas detém tanto poder e tanta beleza ao mesmo tempo. Sim, as palavras também podem ser belas... também podem ser inúteis. Podem não se referir ao carvão mas sim à beleza nele, ou a uma ideia de beleza que pode haver no carvão. Que utilidade tem um poema? Que utilidade têm as palavras num poema... mas não são elas as mesmas palavras num relatório? Quando Camões falou do "fogo que arde sem se ver"... não é o mesmo fogo que eu acendo no meu fogão? Não têm o mesmo nome?
Que estranhas estas palavras... que estranho o mundo em que existem e que coexiste com o nosso. E há palavras que nos escapam, escondem-se de nós como quem não quer ser apanhado facilmente. Há palavras dificeis de aprender... e é dificil controlá-las, moldá-las. Porque as palavras são pedra... não há outra forma de escrever "carvão" (podem haver sinónimos, mas não são a mesma coisa, não têm a mesma essência) mas há formas diferentes de a fazer sentir, de a fazer soar.
Que estranhas palavras estas... podem ser tão simples e tão difíceis ao mesmo tempo. É dificil fazer sentido de algo através das palavras... duvido que este texto faça algum. Porque as palvras não são nossas escravas. Não comandamos que um texto seja escrito... escrevemo-lo. E depois de o ter escrito, é o meu suor e a minha fadiga que restam... não o das palavras. Porque é dificil tornar as palavras nossas... é dificil possuí-las. Mas as palvaras que eu escrevo e falo... tornam-se minhas.
Isso é também um dom, um dom que é nosso... de possuir as palavras. Porque somos nós que as falamos, somos nós que podemos ligar os dois mundos: o das palavras e o das coisas. E somo nós próprios também palavras. Eu sou humano, homem, europeu, Nuno... eu sou palavras, e só me consigo mostrar verdadeiramente aos outros através delas.
Mas é tão dificil fazê-lo... como fazer voar uma rocha, como tornar carvão em diamante. Fazer das palavras o que nós queremos... é quase impossível por vezes. Porque elas me escapam, e me fogem e recusam-se a moldar. Porque já são barro seco... já é dificil dar-lhes outra forma. Uma palavra já passou por tantas bocas e tantas canetas, que é dificil dar-lhe outra forma.
Que estranho este nosso dom... o das palavras.
E que difícil é apreciá-las.

terça-feira, abril 11, 2006

Abertura (Adagio Contemplativo)


Lenta... um adjectivo que poucas vezes utilizamos (se alguma) para descrever a nossa vida. Pelo contrário, costumamos sempre referi-la como rápida, fugaz, efémera... e outros adjectivos que tentam descrever o tão lento correr dos anos e anos da vida de um ser humano.
Digo que a nossa vida é lenta porque é... de facto, poucos animais vivem mais do que o ser humano de hoje em dia (contando que a esperança média de vida é cerca de 65 anos). E por ser tão lenta e demorada... não notamos a sua passagem.
Uma flor, do momento em que a semente é enterrada ao momento em que o botão desabrocha, demora alguns meses... poucos homens conseguirão manter a sua total atenção a este longo desenvolver. Contudo, quando menos esperamos, damos uma olhadela e vemos a flor em todo seu esplendor... e nem demos por isso. Enquanto isso... um cogumelo pode demorar cerca de 1 minuto a atingir o seu tamanho normal e já algumas pessoas me disseram, com orgulho, terem presenciado esse processo na totalidade.
O mesmo se passará talvez com a vida... porque não damos suficiente atenção, apenas apanhamos pequenos momentos; como quem tira uma fotografia de tantos em tantos meses. Obviamente que existirá uma disparidade entre cada imagem que retiramos. Mas a verdade é que o fluir do tempo é algo que o homem nem sempre dá conta.
Como um adagio, a nossa vida percorre um caminho tumultuoso mas num passo demorado, apesar de nem sempre ser contemplativo. Por isso precisamos de apreciar esse decorrer como quem aprecia um andamento lento... mas que numa pulsação pode mudar drasticamente. E por isso comecei este blog... para tentar capturar mais momentos e com mais frequência e para partilhar estes flangrantes devaneios, estas pequenas divagações; porque é triste um adagio não passar de um mero solo (ou uma vida não passar de solidão). Talvez assim possa ajudar este meu adagio a ser um pouco mais... contemplativo.
Bem vindos!